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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Demasiado Humano

Nada do que é humano me é indiferente, diria há dois mil anos um personagem de Terêncio. A mim, porém, autor com trinta anos de idade, que primo pela observação arguta de homens e mulheres, muita coisa ainda causa perplexidade.
Esta semana um fato inusitado me fez compreender porque Hermann Hesse disse que há um lobo dentro do mais gentil dos homens. Um leitor, que conheço pessoalmente e que considerava culto e sensível, enviou-me um e-mail desaforado, agressivo, beirando a possibilidade de processá-lo por danos morais. Parceiro de conversas literárias em outros tempos, estava enfurecido após a leitura de meu livro Cela de Papel.
Ora, sempre considerei como meu título mais polêmico O Sino do Campanário. Este sim me trouxe problemas, principalmente com os católicos de plantão. Confesso que fiquei com muito medo na época do lançamento, e também quando foi adaptado para o cinema. Mas enfim sobrevivi. Agora, com o Cela eu não esperava provocar esse tipo de reação. E, devo registrar, foi a primeira dessa natureza. O cara estava possesso, dizendo que eu deveria queimar o livro, e que inclusive ele pagaria o fósforo. Imaginem uma figura dessas com uma suástica no braço ou num tribunal de inquisição. Eu e meus livros já teríamos sido queimados há muito, ou fuzilados, no caso do primeiro exemplo.
E enumerava erros na minha obra, como jamais falar sobre Deus sem antes ler os Doutores da Igreja -- Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, São Boa Ventura e mais meia dúzia de Sãos. Entenderam, todos vocês, jamais falem de Deus, mesmo numa obra de ficção, mesmo através de um personagem, nem uma frasezinha, sem antes se debruçar sobre esses santos todos.
Também sobre psicologia (um dos personagens diz que se Jesus tivesse frequentado um psicólogo, não teria deixado o legado que deixou), esse leitor prega que jamais eu deveria ter dito isso sem ler todos os tratados sobre psicanálise. Mas é apenas um personagem. Ele está ali para dizer isso. Nem significa que essa é minha opinião, embora talvez seja.
E por aí vai, enfileirando defeitos: conotações apelativas - sex appel – (sic!), repetição de vocábulos (não entendeu que era para reforçar o efeito), o uso excessivo de aspas (ignora que boa parte dos romances usa aspas em vez de travessão) e outros.
Reconheço, claro, que Cela de Papel não é livro para qualquer um. Também sei que não é perfeito. É uma narrativa experimental, inventiva, que quebra algumas formalidades tradicionais. Porém, sua aceitação está muito acima do que eu esperava, com elogios ardentes inclusive de escritores renomados. Acredito, sinceramente, que mesmo o pior dos livros contém pelo menos uma frase que o salva, livrando-o das labaredas.
Assim como me surpreendeu esta semana, numa entrevista, Mike Tyson, fragilizado e humano diante das câmeras, ele que metia medo só com o olhar no ringue, agora me causou espanto este leitor, tão calmo, quase meigo, virar uma fera por causa de um simples livro.
É o poder da literatura. E das contradições todas de que somos feitos.

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