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segunda-feira, 14 de março de 2011

Texto que será publicado no livro comemorativo aos 50 anos da escola onde me alfabetizei

         
Lembrar é viver de novo

                                                                     Uili Bergamin

          A frase acima é de José Saramago, escritor português falecido em 2010 e que influenciou não apenas minha obra, mas minha vida como um todo. O que a memória ama permanece eterno. Pois agora, ao escrever este texto, vivo outra vez minhas primeiras experiências de sociedade, de disciplina, minha alfabetização nas letras e nas paixões. Histórias que já passaram faz tempo, mas que ainda mexem comigo.
          Nasci no dia 02 de fevereiro de 1979 no Hospital Tacchini, Bento Gonçalves. Morávamos no Bairro Licorsul quando, em 1985, fui matriculado na Escola Estadual de 1º Grau Incompleto José Farina. Meu pai era metalúrgico e minha mãe, dona de casa. O Brasil atravessava um momento difícil, de transição política e econômica, que eu ignorava. Levávamos uma vida simples; as várias mudanças de residência e o início da vida escolar é o que realmente me preocupavam. Lembro bem do terror do primeiro dia de aula. Lembro de um cãozinho preto que eu tive, o Toby, que me levava pra escola e me trazia de volta para casa. Era um vira-lata, mas foi meu primeiro grande amigo.
          No pátio da escola enxerguei o mundo. Todos os tipos humanos e desafios que encontro em minha vida, já estavam lá. E o que eu fui naqueles três anos seguintes, sou ainda hoje: teimoso e birrento, mas aplicado, bom aluno. Machado de Assis disse que o menino é o pai do homem. Ele sabia das coisas. Eu era brigão e lutava com todos os alunos de minha idade ou de qualquer outra idade. Brigava por aquilo que eu achava certo, embora estivesse torto na maioria das vezes, seja por aquilo que eu me debatia ou da forma como fazia. Vivia na “cadeirinha de pensar”, colocada em um canto da sala, para refletir sobre meus erros. Serviram muito. Hoje ainda sento sozinho, para ruminar meus atos.
          Mas nem só de caos foi feita aquela época. Grandes amigos-pessoas também surgiram lá. Lembro do Leonardo, veloz, ninguém o pegava nas brincadeiras de recreio; do Clayton, para quem fizemos uma musiquinha (Clayton Salton / tem uma padaria que só faz pão / cada pãozinho 25 cruzados / com os cruzados só compra churrasco / e é sempre aquele fiasco / porque o churrasco está sempre queimado); do Márcio, inteligente, que rivalizava comigo; e do Samuel, meu vizinho. Também lembro das garotas, algumas minhas namoradas, embora nem todas souberam disso: a Graziela, a Aline e outras que não recordo o nome. Em 1986 representei a turma no concurso de dança do Dia de São João. Eu pude escolher qualquer menina da sala e lembro que apontei para uma das gêmeas, lindas. Ficamos em 2º lugar, concorrendo com alunos mais velhos. Foi um dia e tanto. Tomamos quentão, comemos pipoca e passeamos a tarde toda de mãos dadas. Só isso. Mas isso, para um homem de sete ou oito anos de idade, é o céu.
          Das professoras, lembro bem de duas: a Marilene, do jardim da infância e a Rosa, da 2ª série. Ambas amorosas e pacientes. Devo a elas muito de minha memória afetiva e tudo de meu letramento. A primeira xingava, mas com uma didática que dava vontade de beijá-la. A segunda tinha uns olhos grandes, claros, uma mulher forte, mas flexível. Tenho saudade delas.
          Um episódio que me marcou foi uma vez em que minha irmã, Maevi, ficou trancada no colégio. Ela sempre era uma das últimas a sair. Eu e o Toby a esperávamos na calçada e naquele dia ela demorou mais do que o normal. Tanto que trancaram o portão com ela dentro. Ficamos assustados, eu e meu escudeiro; não sabíamos o que fazer. Até que ela apareceu, como se nada fosse. Quando viu as grades cerradas, começou a chorar, e o Toby a latir, e eu a me desesperar. Até que alguém apareceu e a salvou, abrindo as portas da esperança. Mesmo assim ela foi chorando até em casa. Eu e o cachorro tentando brincar, para distrai-la.
          Em 1988 fomos morar em Cotiporã, terra da família de meu pai, quando eu tinha passado para a 3ª série. O objetivo de qualquer aluno, naturalmente, era a 4ª, pois era a turma dos maiores, os mais respeitados. Incrível como aqueles caras pareciam grandes naquela época! Depois, teríamos que ir para outra escola, provavelmente a Landell de Moura. Eu não queria. A José Farina era minha casa. Todos nos conhecíamos. As professoras eram nossas mães.
          Sim, lembrar é viver de novo. Sinto agora o gosto dos lanches que a mãe preparava e colocava na merendeira, o cheiro dos cadernos e lápis e borrachas novas no início do ano letivo. Ouço os risos dos meus colegas, as explicações da profe, o quadro todo riscado e ela nos ensinando as pronúncias daqueles hieróglifos. A tremedeira nas pernas, instantes antes do sinal e a beleza do azul marinho de nossos uniformes. Uma vez, na apresentação de um jogral, todos vieram de calça e eu, só eu, de bermuda. Em vez de ser excluído, me colocaram na frente, na primeira fila.
          Hoje sou escritor, com vários prêmios e livros publicados. Trabalho na Biblioteca Pública de Caxias do Sul, escrevo para jornais, revistas e apresento programas de TV. Mas sou de origem humilde, vindo de um bairro operário. Tive a sorte de ter uma mãe que se preocupou com meu estudo, dentro de suas condições. E a felicidade ainda maior de ter me alfabetizado em uma instituição pública, mas de qualidade humana e pedagógica, como é o caso dessa escola. A tua aldeia te dá o poder universal, já disse alguém. O bom aluno que fui, a capacidade de relacionamento com professores e colegas, a responsabilidade e a disciplina que aprendi, fizeram de mim exatamente o que sou hoje.
          A vocês, direção, professores e funcionários da José Farina, minha gratidão eterna. Espero que essa escola atravesse as décadas e faça por muitos outros o que fez por mim.
          Parabéns e muito obrigado.
          Um grande abraço.