Páginas

domingo, 6 de janeiro de 2013

Cárcere literário, com prazer

Texto de Márcia Falkembach

          Cela de Papel transcende. É muito mais do que apenas um livro, uma mera obra literária; é um pedaço de imaginação em estado puro, escrito com a maestria dos gênios. Em nada perde para os grandes e imortais clássicos. Não é um livro a ser lido, é uma obra a ser sentida. Esqueça os olhos, a parte do seu corpo que lê as páginas de Cela de Papel é a alma.
          Já aviso, não é um livro para leitores amadores, é para aqueles cujo prazer da leitura corre nas veias, aqueles cujas palavras são petiscos para o prato principal: a inspiração plena. Cela de Papel não conta uma história definível por uma sinopse. É um apanhado de delírios unidos pelo talento do autor, Uili Bergamin.
          Já na introdução o autor avisa o leitor que nada do que virá é convencional, clichê ou formulaico.

“Só peço perdão aos melindrosos pelo que aí segue. É que literatura não é apenas jogo de palavras. Literatura é emoção, é uma mistura de ingredientes. É vida recolhida em estado prenhe de dor, de amor e de saudade. A história em si (ou o gênero, ou a capa do livro) é apenas a porta de entrada para algo maior. Literatura é feita de palavras boas de se comer. E as ervas daninhas podem se transformar em ervas aromáticas.

          Por isso meu coração é obeso. Um degustador arguto das especiarias que o dicionário oferece. E somente a alquimia perfeita entre as palavras pode tornar possível a beleza. Só o feitiço certo, a receita exata, pode levar o leitor ao gozo, uma reflexão profunda sobre coisas de sua própria vida.”
          Ainda antes de conhecermos um tanto mais do narrador – aquele que nos tornamos íntimos e descobrimos depois que de fato nada sabíamos – o primeiro parágrafo da obra me fez parar e reler, repetidamente, por se tratar da definição perfeita do sentimento de qualquer contador de histórias.

“O difícil não é a gente ter boas ideias. Nem falar delas. Difícil mesmo é encontrar alguém, especial, que as ouça. No entanto, pior do que não ter a quem contar o que a gente sente, é contar o que a gente sente a quem não sente o que a gente conta. É dolorido. É o diabo.”

          Sou leitora voraz, parafraseando o autor em uma dedicatória a mim em um de seus livros para mim autografado, “amante e amada das letras” e quase nunca, nas centenas de livros que já devorei, me deparei com um parágrafo tão expressivo, tão... ideal.
          Poucas vezes, na minha trajetória de escritora de gaveta, me senti tão compreendida, tão bem definida quanto a certeza da dor que bate ao autor quando suas palavras se perdem no vácuo da ausência daqueles que sentirão com ele.
          Mas a beleza da obra, obviamente, não para por aí. Embora com uma história totalmente não convencional, sem linearidade, noção do tempo ou definição exata de personagens (ao longo da obra vamos entendendo quem é quem, mas não há de princípio uma explicação que leve o leitor a acompanhar facilmente os relatos), por diversas vezes tive vontade saber o que viria a seguir.

“Estou leve. Estou magro. Tenho a sensação de ter ficado oco. As mesmas coisas sempre as mesmas, apenas passando de um dia para outro. Como se fossem outras. O mesmo Sol, a mesma chuva. Os mesmos livros espalhados pela casa. É que não tomo o que vejo, como em xícaras de uma sopa pronta. Nunca pego o tempo a tempo. Vivo num hiato. É sempre tarde para tanto. Não tenho certeza de nada do que digo. Só do que leio. Do que digo, tudo pode ser assim ou mais ou menos por aí. Queria apenas flutuar num espaço onde o olho humano não me alcançasse. Eu não queria morrer para poder ficar quieto. No meu canto. As pessoas lá fora exigem respostas. Quase tudo, no homem, depende de respostas. Será que todas as benditas perguntas têm sempre de acabar numa maldita resposta?”

          Mais tarde então me deparei com um trecho lindo sobre gêneros; uma linda definição da não generalização dos papéis de gênero. Do quanto homens e mulheres são todos humanos, independente da genitália que carregam.

“'Dizer que o homem é forte e a mulher sensível, que o homem é razão e a mulher coração, é afirmar que a natureza é burra. Não sabe conciliar. É desprezar toda sensibilidade no homem e qualquer raciocínio na mulher.’”

          O mais bonito no trecho é que é proferido por uma personagem feminina, de extraordinária força, diante de um narrador masculino de expressiva sensibilidade. Toque de mestre. Palmas ao autor. A maestria prossegue, até a grande surpresa, até o espetacular encerramento de uma das obras mais peculiares que já tive em minhas mãos. E em minha mente.
          A obra é curta, possível de ser lida em um fôlego só. Não o fiz; preferi degustar, como o próprio autor sugere ao transformar os capítulos em passo a passo para fazer um bolo. Degustei com imenso prazer e terminei lambendo os dedos. Quero mais.
          E ainda dizia ao Uili, nas últimas vezes que tive a alegria de encontrá-lo nas esquinas da vida, que seu conto “O Sino do Campanário” era a expressão máxima do talento; que era insuperável e certamente um dos melhores textos já produzidos na história (não me julguem, hipérbole é de longe a figura de linguagem que melhor me descreve, mas ainda assim, o texto é de fato estupendo). Me enganei. Preciso reler o “Sino...” para julgar melhor, mas a curto prazo, devo admitira que Cela de Papel supera.
          Uma coisa posso dizer com total certeza e sem medo de cair em exagero: Cela de Papel mudou tudo. Me trouxe uma enxurrada de inspiração e uma insaciável vontade escrever. Não que não a tivesse antes – vivo das letras antes mesmo de conhecê-las – mas me sinto livre no universo das palavras. Sinto-me menos presa às fórmulas, mesmo que isso soe tão pouco comercial e me dê poucas chances de um dia me tornar Best Seller.
          Seja como for, recomendo a obra, como livro de cabeceira, para ler de uma vez só e beliscar de tempos em tempos quando nada mais saciar sua fome de leitura.

Nenhum comentário: